Kazuo Okubo

Portfólio

O Colecionador de Paisagens

O dia, que se desenrolava sem esforço ou agenda turística, prolongava-se por passeios a pé de tal forma detalhados que é possível reconhecer o trajeto escolhido pelo artista, as ruas que se sucediam em caminhos mapeados. A chegada da noite, a mudança de clima, o movimento entusiasmado dos centros urbanos, todos os passos confirmam o ciclo que se encerra a cada novo dia, pleno de surpresas.

A postura corporal, a estatura física, a altura dos olhos do fotógrafo impregnam cada imagem de um ponto de vista muito particular, embora o objeto de foco seja assunto já longamente visitado na história da arte.

Afinal, as cidades escolhidas – Amsterdã, Praga, Paris e Roma – constituem paisagens urbanas edificadas há séculos, testemunhos da luta travada entre construção, destruição, transformação e preservação cotidianas, provocadas pela ação do tempo e pela ação do homem.

Mais relevante é o fato de que muitas dessas paisagens já se cristalizaram em cartões-postais e ilustram caixas de lápis de cor, agendas, folhinhas e artigos de revistas de turismo. Ali estão os vestígios do império romano, as beiras de rio que serpenteiam cidades seculares, o monumento ao triunfo napoleônico, a basílica máxima da cristandade, a beleza transbordante e eterna de uma Europa com que todos nós sonhamos.

O apego a tais imagens justifica-se não apenas por sua beleza natural ou arquitetônica, mas especialmente pelo valor histórico desses lugares e pela recorrência dessa iconografia na pintura, no desenho e na gravura de grandes mestres. Formamos nosso olhar a partir dessa iconografia, conjunto fundamental de vocábulos arquitetônicos que constituem a cultura urbana ocidental, organizados nas cidades como uma cartilha de reconhecimento do universo humanista.

O grande desafio da curadoria foi fixar escolhas na profusão de fotos de excepcional qualidade. A cor, a definição e o enquadramento, extrapolados à perfeição em milhares de imagens, foram motivo de grande dificuldade no empreendimento. Como escolher uma dúzia de fotos, entre centenas de clicsimpecáveis?

Seria ingênuo tentar justificar a qualidade que caracteriza a fotografia atual como mero fruto das facilidades oferecidas pela tecnologia. Na verdade, a perfeição se estabelece como patamar inicial para esse artista e advém de dedicação obstinada, aprimorada em décadas de trabalho cotidiano.

Munido de máquinas simples, nenhum equipamento de peso, nem sequer um tripé, Kazuo não empreendeu uma viagem com o objetivo de produzir uma exposição. Tudo foi espontâneo, no acaso de um flâneur que se surpreendia com o mundo ao seu redor e essa naturalidade define os resultados.

Vale questionar o que se registra em uma fotografia. Seguramente não apenas o objeto enfocado, pois nenhum artista chega inocente ao seu trabalho. Antes, carrega para dentro dele escolhas anteriores, alternando ao longo de um dia de trabalho a construção simultânea de diferentes coleções de imagens, que se estabeleceram há muito tempo em sua memória, em seu olhar.

A fotografia consolida ainda, além de escolhas, o apego a certos aspectos do mundo, aqueles sob os quais a personalidade do artista se formou. A máquina – artefato intermediário – confirma quem é o homem por trás da objetiva. O artista projeta-se sobre a paisagem, na descoberta e reencontro de si mesmo. E com a foto revela-se, na mesma medida, a subjetividade, o homem e sua própria história.

É mais fácil avistar essa amplitude em imagens mais complexas, compostas pela sobreposição de planos infinitos, reflexos, fachadas, vidros e superfícies espelhadas. O acervo que intitulei Paisagem obtusa está sobrecarregado de referências pictóricas. Aqui a cidade funciona como um suporte. Em suas superfícies de acúmulo inscreve-se a vida de uma criatura sempre incompleta, para quem fantasia e realidade somam testemunho de sua incompletude.

Construído de forma oposta, o conjunto Paisagem formal de Kazuo Okubo, baseia-se na legibilidade da linha do horizonte. O olhar fixado em sua estatura, a distância do corpo ao objeto fotografado, a mesma amplitude de visão, a mesma escala (como se essas paisagens estivessem dispostas lado a lado, em caixas fixas de um museu de história natural) contradizem a verdade geográfica. Existe um mundo perfeito, pura harmonia e beleza. As criaturas posam como atores controlados; os pássaros se encaixam perfeitamente contra os céus; as sombras, as cores, os elementos se orquestram no limite da naturalidade, resultando construções apuradas pelo olhar. E, no entanto, são fotos retiradas da dinâmica incontrolável das cidades.

O terceiro acervo, Paisagem colagem, registra uma construção ainda mais elaborada, beirando o imponderável, o impossível. São fotos que revelam um lado mais interior da urbis, um universo-dentro, fruto da anarquia desvairada que a comunicação de massa impõe à superfície citadina, resultado da superposição de imagens da publicidade variada que polui visualmente as cidades. São affiches, cartazes, chamadas publicitárias, banners de fachadas, contrapondo planos, ofendendo escalas e ironizando as nossas existências. Mesmo quando trafega no espaço poluído pela publicidade – para a qual o artista tanto produziu em sua vida profissional – os fotogramas de viagem de Okubo conseguem manter distância, não se restringindo a aspectos efêmeros. Sobre a paisagem recorta-se um outro espaço, como buracos, portais de passagem, túneis. Surpreendo-me ao ver essas fotos, como se houvera algo de muito raro a acontecer nesses lugares, como se o artista houvesse instalado perturbações propositais, distúrbios na paisagem. Esqueço-me de que essa é a forma que emprestamos hoje às cidades e que achamos normal que seja assim. A fotografia registra a lógica rocambolesca de nosso tempo, graças à qual as agruras do consumo são neutralizadas como uma dádiva da paisagem.

Muitos outros recortes são possíveis e outros muitos acervos poderão ser montados, pinçando imagens desse conjunto formidável. Mas nenhum esforço nos afastará da particularidade de seu corpo autoral. Não mais uma Europa, mas um outro continente, um lugar chamado Kazuo Okubo

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Ralph Gehre Novembro/2008